Bourdieu
e a educação
Pelo sistema de
ensino, as diferenças iniciais de classe são transformadas em desigualdades de
destino escolar e em forma específica de dominação
Ana Paula Hey e
Afrânio Mendes Catani
A partir
dos anos 1960, e durante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um conjunto de
análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou
decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de
pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da
sociedade. Em “Uma sociologia da produção do mundo cultural e escolar”,
introdução a Escritos de
educação (1998), que reúne 12 textos do sociólogo francês, Maria A.
Nogueira e Afrânio Catani escrevem o seguinte: “Ao mesmo tempo em que colocava
novos questionamentos, sua obra fornecia respostas originais, renovando o
pensamento sociológico sobre as funções e o funcionamento social dos sistemas
de ensino nas sociedades contemporâneas, e sobre as relações que mantêm os
diferentes grupos sociais com a escola e com o saber. Conceitos e categorias
analíticas por ele construídos constituem hoje moeda corrente da pesquisa
educacional, impregnando boa parte das análises brasileiras sobre as condições
de produção e de distribuição dos bens culturais e simbólicos, entre os quais
se incluem os produtos escolares”.
Bourdieu, em
seus escritos, procurou questionar, nas sociedades de classes, temática que
persegue muitos intelectuais: a compreensão de como e por que pequenos grupos
de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e
representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de
mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo,
para ele, converte-se em poderoso instrumento de libertação – é esse
procedimento que ele realiza, dentre outros domínios, no educacional.
A cultura vem
a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas
entre grupos sociais cuja finalidade é a de manter distanciamentos distintivos
entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a
qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica
(elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção,
pela pretensão e pela privação. Definida por gostos e formas de apreciação
estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da
cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas
atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à
imposição pura e simples. O sistema de ensino desempenha papel de realce na
reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando ainda, para Bento
Prado Jr., “como chancela de diferenças culturais e lingüísticas já dadas,
antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é
necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes
classes sociais. (…) O código lingüístico da burguesia (com seus cacoetes,
idiotismos, sua particularidade) será encontrado, pelos futuros notáveis, nas
salas de aula, como a linguagem da razão, da cultura, numa palavra, como
elemento ou horizonte da Verdade. O particular é arbitrariamente erigido em
universal e o ‘capital cultural’ adquirido na esfera doméstica, pelos filhos da
burguesia, lhes assegura um privilégio considerável no destino escolar e
profissional. No Destino, enfim” (“A Educação depois de 1968”, em Os Descaminhos da Educação,
ed. Brasiliense).
A escola como reprodutora da dominação
A função do
sistema de ensino é servir de instrumento de legitimação das desigualdades
sociais. Longe de ser libertadora, a escola é conservadora e mantém a dominação
dos dominantes sobre as classes populares, sendo representada como um
instrumento de reforço das desigualdades e como reprodutora cultural, pois há o
acesso desigual à cultura segundo a origem de classe.
O filósofo
idealista Alain (Émile Chartier, 1868-1951) foi professor durante décadas na Khâgne (classes
preparatórias às Escolas Normais nas áreas de letras e filosofia, onde são
recrutados os intelectuais de maior prestígio no campo intelectual francês) do
Lycée Henri IV (Paris) tendo, dentre centenas de outros alunos, Raymond Aron,
Simone Weill e Georges Canguilhem. Em 1932, Alain escrevia em Propos sur l´éducation – Pédagogie
enfantine, de maneira apologética, que “se pode perfeitamente dizer
que não há pensamento a não ser na escola”.
Bourdieu
construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação
procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain, em que a
reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição
francesa. Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à
escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e
individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e
culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito. Desmonta, também, os
mecanismos através dos quais o sistema de ensino transforma as diferenças
iniciais – resultado da transmissão familiar da herança cultural – em
desigualdades de destino escolar. Explora a relação com o saber, em detrimento do
saber em si mesmo, mostrando como os estudantes provenientes de famílias
desprovidas de capital cultural apresentarão uma relação com as obras da
cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa, tensa,
esforçada, enquanto para os alunos originários de meios culturalmente
privilegiados essa relação está marcada pelo diletantismo, desenvoltura,
elegância, facilidade verbal “natural”. Ao avaliar o desempenho dos alunos, a
escola leva em conta, conscientemente ou não, esse modo de aquisição e uso do
saber.
Segundo
Bourdieu, “para que sejam desfavorecidos os mais favorecidos, é necessário e
suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que
transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação,
as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais.
Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como
iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às
desigualdades iniciais diante da cultura”.
Bourdieu
constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não
explícitas que o ancoram em uma longa trajetória que envolve análises empíricas
objetivas, centradas em estatísticas da situação escolar francesa. Já em 1964,
em Les étudiants et leurs
études (Os
estudantes e seus estudos) e Les
héritiers. Les étudiants et la culture (Os herdeiros. Os estudantes e a cultura),
escritos com Jean-Claude Passeron, examina como os estudantes se relacionam com
a estrutura do sistema escolar e como são nele representados, e constata a
desigual representação das diferentes classes sociais no sistema superior.
Investiga a cultura “legítima”, aquela das classes privilegiadas que é validada
nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e o ensino, aquele que
autentica um corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber
dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas.
O fato de
desvendar as desigualdades do ensino francês, tanto como sistema como em seu
interior, significa uma grande mudança no pressuposto já canonizado –
principalmente com Durkheim, que personifica o ideal da Terceira República
(1870-1940), conhecida como “A República dos Professores” –, em que a escola
deveria fornecer a educação para todos os indivíduos, proporcionando-lhes
instrumentos que pudessem garantir sua liberdade, mas, também, sua ascensão
social.
Ao afirmar que
o sistema escolar institui fronteiras sociais análogas àquelas que separavam a
grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma
ruptura entre os alunos das grandes escolas e os das faculdades (ao analisar o
campo universitário francês e o papel das Grandes Écoles), Bourdieu desvela a crueza da
desigualdade social e, ao mesmo tempo, como ela é simulada no sistema escolar e
entranhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo –
professores, alunos, dirigentes.
Conhecimento e poder
Assim, a
instituição escolar é vista como desempenhando uma grande função de produção de
diferenças cognitivas, uma vez que ajuda a produzir esquemas de apreciação,
percepção e ação do mundo social por via da internalização dos sistemas
classificatórios dominantes no mundo social global.
Suas análises
da educação, então, passam a pertencer ao campo da sociologia do conhecimento e
da sociologia do poder, pois como ele mesmo afirma, longe de ser uma ciência
aplicada e adequada somente aos pedagogos, ela se situa na base de uma
antropologia geral do poder e da legitimidade, porquanto se detém “nos
mecanismos responsáveis pela reprodução das estruturas sociais e pela
reprodução das estruturas mentais”.
Para Loïc
Wacquant, Bourdieu oferece uma anatomia da produção do novo capital [o
cultural] e uma análise dos efeitos sociais de sua circulação nos vários campos
envolvidos no trabalho de dominação. Em La
noblesse d´État (A nobreza do Estado) comprova e reforça suas teses
iniciais sobre o sistema de ensino e a “relação de colisão e colusão, de
autonomia e cumplicidade, de distância e de dependência entre poder material e
poder simbólico”. Sua sociologia da educação é, antes de tudo, uma
“antropologia generativa dos poderes focada na contribuição especial que as
formas simbólicas dão à respectiva operação, conversão e naturalização. (…) O
interesse de Bourdieu pela escola deriva do papel que ele lhe atribui como
garantidor da ordem social contemporânea via magia do Estado que consagra as
divisões sociais, inscrevendo-as simultaneamente na objetividade das
distribuições materiais e na subjetividade das classificações cognitivas”.
A apropriação
do autor no campo educacional brasileiro ocorre de forma mais incisiva no uso
de suas noções mais evidentes e, não raramente, desvinculadas de sua
epistemologia. É por isso que podemos encontrar os “teóricos” de Bourdieu, os
“ativistas” e, de forma menos usual, aqueles que se apropriam de sua “prática
epistemológica”. Constata-se a necessidade de re-conhecer o autor, buscando o
entendimento da teoria sociológica que embasa suas noções mais conhecidas e
também mais banalizadas, assim como o sentido da percepção do mundo social que
tal teoria informa. Bourdieu nos ensina que toda prática humana encontra-se
imersa em uma ordem social, sobretudo essa categoria específica de práticas
inerentes ao mundo acadêmico. Fazer uma sociologia da educação bourdieusiana, analisando o papel do
sistema de ensino na consagração das divisões sociais e consolidando um novo
modo de dominação, torna-se um desafio até para os acadêmicos mais ousados.
Ana Paula Hey é professora no
Programa de Pós-Graduação em Educação da UMESP e autora do livro Esboço de uma sociologia do campo
acadêmico: A educação superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP)
Afrânio Mendes Catani é professor na
Faculdade de Educação da USP e pesquisador do CNPq. Organizou, com Maria Alice
Nogueira, Escritos de
educação (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu.
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